Ainda não!
O diálogo entre cinema e literatura é antigo. Surgiu em Paris
imediatamente após dois irmãos franceses deslumbrarem o mundo inteiro com uma
invenção de nome singular: cinematógrafo. Intelectuais, literatos e teatrólogos
ficaram, a princípio, inquietos. Aquela novidade podia produzir arte? Era ela
própria uma forma de arte? Essas indagações, porém, não impediram que obras
literárias fossem transmutadas em
filmes. O resultado dessas empreitadas era sempre
questionável, mas a tentativa já era um bom sinal: imagem e palavra podiam
trocar idéias e experiências.
Akira Kurosawa (1910-1998), um grande admirador da
literatura russa, dirigiu um belo filme sobre a vida de um homem que amava as
letras germânicas. Madadayo (1993) conta a história do professor
Hyakken Uchida (1889-1971), docente de língua alemã na Academia Imperial do
Exército Japonês. É um senhor erudito e sensível, muito querido por seus
alunos, que vê com pesar a desgraça que tomou conta de sua terra natal: é o
período posterior à Segunda Guerra Mundial,o Japão está arrasado. O que o
mantém vivo é o amor de sua esposa e o apego que tem pela cultura à qual ele se
dedicou durante anos. Sua cidade está destruída pelas bombas; contudo,
inexplicavelmente, sua biblioteca permanece intacta. Ele padece da mania dos
livros, aquela descrita por Brás Cubas. Os exemplares nas estantes são uma
extensão dele mesmo, que se recusa sucumbir à destruição. Enquanto reconstrói a
própria vida o professor é ajudado por seus ex-alunos, que o homenageiam em
suas festas de aniversário. Perguntam-lhe “Mada kai?” (Está preparado?). E ele,
com um imenso copo de cerveja nas mãos, responde sorridente “Mada dayo” (Ainda
não). Não, ele ainda não está preparado para morrer. Quer se ater à vida, à
esposa, ao país. Quer se ater aos que vêem nele uma figura paterna. Quer se
ater às culturas que ele ama – japonesa e alemã – que as bombas não lograram
destruir. É um filme que merece ser apreciado.
Michio
Takeyama (1903-1984) foi outro professor japonês que amou a literatura alemã
durante toda a sua vida. Autor do romance A Harpa da Birmânia, que se tornaria
filme em 1956 pelas mãos de Kon Ichikawa, Takeyama estudou literatura alemã na
Universidade Imperial de Tóquio, de onde partiu para se aperfeiçoar em Berlim. Em seu próprio
país ele também foi crítico literário e tradutor. Verteu para o japonês as
obras de nomes consagrados das letras alemãs, sobretudo as de um médico e
teólogo que ele muito admirava: Albert Schweitzer. Takeyama foi corajoso ao
criticar o totalitarismo que ia se apossando da Alemanha, então já aliada do Japão.
Por muito menos que isso, pessoas eram presas e assassinadas pela irmã gêmea da
Gestapo, a temida Kempeitai (polícia secreta do exército japonês). Em toda a
produção escrita de Takeyama vêem-se influências de autores de língua alemã, em
maior ou em menor grau. E o cinema tratou de auxiliá-lo na divulgação de seu
trabalho. O invento dos irmãos Lumière é, de fato, um ótimo marido para a
literatura. Esse casal um dia deixará de manter um diálogo? Talvez. Mas, por
enquanto, a resposta é: ainda não!