domingo, 19 de agosto de 2012

Nem só de Grimm vive a Alemanha







   Em vinte de dezembro deste ano o mundo literário irá comemorar a permanência de uma coletânea de duzentos contos sobre os quais crianças e estudiosos de muitas nacionalidades já se debruçaram. Nessa data, os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm publicaram o primeiro volume de Kinder- und Hausmärchen. Os volumes dois e três vieram nos anos seguintes - e nunca mais a literatura foi a mesma! A influência dos jovens juristas e bibliotecários que, como diria Machado de Assis, padeciam de achaques literários, fez-se e ainda se faz visível em todo o universo artístico, transpondo barreiras culturais e idiomáticas sem dificuldades. O lugar de honra dos referidos irmãos é mais do que merecido. Só que a fama de uns obscurece o talento de outros. Na literatura não é diferente. Façamos justiça a um outro alemão que também se encantou por lendas e contos de fadas a ponto de registrá-los para a posteridade.
   O alemão em questão chamava-se Ludwig Bechstein (1801-1860). Natural de Weimar, Bechstein sofreu muito cedo o infortúnio de ser o resultado de uma relação ilícita para os padrões da época. O francês Louis Dupontreau abandonou a pobre Johanna Carolina Dorothea Bechstein ainda grávida do futuro escritor, expondo-a a humilhação pública. O naturalista Johann Matthäus Bechstein, parente da moça, livrou mãe e filho do opróbrio adotando o menino quando este tinha nove anos. Graças à boa condição financeira do tio, Ludwig Bechstein pôde estudar e escolheu a profissão de farmacêutico (ah,os mistérios alquímicos! Sempre fascinando escritores e sonhadores!). Dos vinte e oito anos de idade até os trinta, Bechstein estudou História, Literatura e Filosofia, primeiro em Leipzig, depois em Munique, dessa vez beneficiado por uma bolsa de estudos concedida por Bernhard II, Duque de Saxe-Meiningen. A partir daí começa a semelhança com os irmãos Grimm: em 1831, Bechstein foi nomeado bibliotecário em Meiningen. Logo ganhou confiança do nobre que o ajudou, e em 1840 foi nomeado Conselheiro. A estabilidade financeira permitiu-lhe um convívio íntimo e tranqüilo com os inúmeros livros da biblioteca ducal. A bela paisagem de Meiningen também contribuiu para que Bechstein deixasse à vontade sua fértil imaginação. Embora já houvesse publicado contos e poemas enquanto atuou como farmacêutico, e mais tarde na universidade, foi só no ano de 1845 que ele trouxe ao público sua produção até hoje mais conhecida: Deutsches Märchenbuch. Esse livro traz contos tão belos, profundos e eruditos quanto as narrativas coletadas por Jacob e Wilhelm Grimm. A fonte é a mesma: o Märchen genuíno, aquele que não se preocupa com “finais felizes”; antes, seu foco está em verdades mais complexas nem sempre visíveis à primeira leitura. Como não podia deixar de ser, sendo autêntico filho do Romantismo, a religião igualmente influenciou o trabalho de Bechstein. Em 1834 ele publicou Luther, uma breve biografia literária do reformador protestante; e em 1853 veio o Deutsches Sagenbuch, coletânea de lendas alemãs. A mitologia não poderia jamais ficar fora de uma produção literária romântica.

   Até hoje Ludwig Bechstein é muito querido por seus conterrâneos da Turíngia. Pouco conhecido e estudado no Brasil, esse autor tem muito a nos oferecer. Todo um tesouro de uma Alemanha idealizada pelos devaneios de um escritor sensível e talentoso está aí para ser descoberto por nós. Que neste ano de comemorações pela obra dos irmãos Grimm seja também possível não nos esquecermos dos demais alemães geniais e produtivos que trouxeram para este mundo as realidades de um sonho.  

domingo, 8 de julho de 2012


                                     Era uma vez...Grimm!


                                                     


   Na sexta-feira passada, dia 6 de julho, fui ao SESC Ginástico a fim de assistir à peça “Era uma vez...Grimm” por recomendação de um amigo. Confesso que minha maior motivação foi o fato de o foco de meus estudos em literatura alemã serem os contos de fadas, ou Märchen. No mais, minhas expectativas eram até modestas. Contudo, as atuações de Wladimir Pinheiro e José Mauro Brant, que interpretam os irmãos Grimm, e as de Ester Elias e Janaina Azevedo, que dão vida às madrastas e princesas, deixaram-me extremamente fascinado. Um musical enriquecido com efeitos especiais belíssimos, a peça faz uma justa homenagem aos irmãos que deixaram para o mundo o legado das tradições orais alemãs. A semelhança dos atores com Jacob e Wilhelm Grimm é inacreditavelmente impressionante. Conseguiram mesclar, a um só tempo, a imagem do típico romântico do século XIX com alguns retoques do expressionismo alemão da década de 1920. Antes ou depois da apresentação o espectador pode adquirir um portfólio no qual há lindas ilustrações e ótimos artigos, em especial da doutora Karin Volobuef, professora na UNESP. O espetáculo é apresentado nas versões adulta e infantil e vai até o dia 29 de julho. Recomendo-o a todos.

Idioma e fascínio


                                                     Idioma e fascínio


                                       


   É bem possível que Elias Canetti (1905-1994) não tenha sido o primeiro a usar a expressão die Zaubersprache (a língua mágica) para referir-se ao idioma alemão. Mas é inegável que o trabalho desse romancista tornou-a mais famosa. O mundo atual vive sob a égide do inglês, ferramenta mais do que útil para os muitos contextos de hoje. Entretanto, a língua alemã tem algo em si que encanta, fascina, enleva, uma beleza idiomática capaz de atingir até os que a desconhecem. Seja na forma de poema, romance, música ou simples diálogo, o alemão fascina. Há quem se expresse por meio dele porque escolheu fazê-lo. Alguns autores geniais que escreveram em alemão não eram alemães; porém, adotaram o áspero e belo idioma germânico como sua pátria espiritual.
   Comecemos por Elias Canetti. O autor de Auto de Fé (Die Blendung) era búlgaro e judeu de origem sefardita. Cresceu num ambiente onde se falavam várias línguas, dentre elas o ladino, idioma judeu-espanhol herança de seus ancestrais. Aos oito anos de idade ele presenciou seus pais conversarem numa língua que lhe era incompreensível, mas encantadora. Sim, era alemão, mais especificamente o alemão vienense, uma vez que o casal havia estudado na Áustria. Canetti logo se mudaria com a família para a Inglaterra, mas ficaria pouco tempo lá. Após o falecimento de seu pai ele vai para Viena, onde fica até a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Muda-se, então, para a Suíça, de onde parte para estudar Química em Frankfurt, Alemanha. Em 1938 acontece o infeliz Anschluss, que obriga Canetti a ir para Londres, cidade na qual viverá até a década de 1970. Fluente em muitas línguas, Canetti escolheu o alemão para tornar memoráveis suas obras. Em tempo: a frase die Zaubersprache está na autobiografia A Língua Absolvida (Die Gerettete Zunge).
   O franzino Franz Kafka (1883-1924), que dispensa maiores apresentações, era natural de Praga quando essa magnífica cidade fazia parte do então poderoso império Austro-Húngaro. A germanofilia era forte no meio intelectual e social freqüentado pelos familiares e amigos do jovem Kafka, que já falava alemão desde a infância. Na universidade, onde se formou em Direito, as aulas eram também ministradas nesse idioma. Não havia fuga possível. Todo o mundo grotesco e distorcido de Kafka foi transposto para o papel em língua alemã.
   Outro súdito do extinto império Austro-Húngaro, Sigmund Freud (1856-1939) amou sobremaneira o idioma alemão e fez dele mais do que um veículo para disseminar suas idéias. Seu amigo,e depois inimigo,Carl Gustav Jung era oriundo de Zurique, na Suíça, e suas obras foram igualmente escritas em alemão com um toque especial: as singularidades da variante desse idioma falado em terras suíças.
   Se listasse aqui os numerosos não-alemães, incluindo brasileiros, que se utilizaram da língua alemã para evolução do conhecimento, o artigo se tornaria longo e enfadonho. A guisa de conclusão cito apenas a austríaca Elfriede Jelinek, laureada com o Nobel de Literatura em 2004, e a romena Herta Müller, ganhadora do mesmo prêmio em 2009. Como estudante de Letras-Alemão, tenho muitos motivos para crer que a língua alemã seguirá conquistando adeptos e fascinando leitores e escritores de todo o mundo.

domingo, 24 de junho de 2012

Ainda não!

                                                                   Ainda não!



  O diálogo entre cinema e literatura é antigo. Surgiu em Paris imediatamente após dois irmãos franceses deslumbrarem o mundo inteiro com uma invenção de nome singular: cinematógrafo. Intelectuais, literatos e teatrólogos ficaram, a princípio, inquietos. Aquela novidade podia produzir arte? Era ela própria uma forma de arte? Essas indagações, porém, não impediram que obras literárias fossem transmutadas em filmes. O resultado dessas empreitadas era sempre questionável, mas a tentativa já era um bom sinal: imagem e palavra podiam trocar idéias e experiências.
   Akira Kurosawa (1910-1998), um grande admirador da literatura russa, dirigiu um belo filme sobre a vida de um homem que amava as letras germânicas. Madadayo (1993) conta a história do professor Hyakken Uchida (1889-1971), docente de língua alemã na Academia Imperial do Exército Japonês. É um senhor erudito e sensível, muito querido por seus alunos, que vê com pesar a desgraça que tomou conta de sua terra natal: é o período posterior à Segunda Guerra Mundial,o Japão está arrasado. O que o mantém vivo é o amor de sua esposa e o apego que tem pela cultura à qual ele se dedicou durante anos. Sua cidade está destruída pelas bombas; contudo, inexplicavelmente, sua biblioteca permanece intacta. Ele padece da mania dos livros, aquela descrita por Brás Cubas. Os exemplares nas estantes são uma extensão dele mesmo, que se recusa sucumbir à destruição. Enquanto reconstrói a própria vida o professor é ajudado por seus ex-alunos, que o homenageiam em suas festas de aniversário. Perguntam-lhe “Mada kai?” (Está preparado?). E ele, com um imenso copo de cerveja nas mãos, responde sorridente “Mada dayo” (Ainda não). Não, ele ainda não está preparado para morrer. Quer se ater à vida, à esposa, ao país. Quer se ater aos que vêem nele uma figura paterna. Quer se ater às culturas que ele ama – japonesa e alemã – que as bombas não lograram destruir. É um filme que merece ser apreciado. 



   Michio Takeyama (1903-1984) foi outro professor japonês que amou a literatura alemã durante toda a sua vida. Autor do romance A Harpa da Birmânia, que se tornaria filme em 1956 pelas mãos de Kon Ichikawa, Takeyama estudou literatura alemã na Universidade Imperial de Tóquio, de onde partiu para se aperfeiçoar em Berlim. Em seu próprio país ele também foi crítico literário e tradutor. Verteu para o japonês as obras de nomes consagrados das letras alemãs, sobretudo as de um médico e teólogo que ele muito admirava: Albert Schweitzer. Takeyama foi corajoso ao criticar o totalitarismo que ia se apossando da Alemanha, então já aliada do Japão. Por muito menos que isso, pessoas eram presas e assassinadas pela irmã gêmea da Gestapo, a temida Kempeitai (polícia secreta do exército japonês). Em toda a produção escrita de Takeyama vêem-se influências de autores de língua alemã, em maior ou em menor grau. E o cinema tratou de auxiliá-lo na divulgação de seu trabalho. O invento dos irmãos Lumière é, de fato, um ótimo marido para a literatura. Esse casal um dia deixará de manter um diálogo? Talvez. Mas, por enquanto, a resposta é: ainda não!

sábado, 2 de junho de 2012

Obra Completa de Hermann Hesse

A publicação da Obra Completa ( Sämtliche Werke) de Hermann Hesse pela Suhrkamp Verlag é um fato notável.Quase uma enciclopédia,a coleção traz uma série de textos inéditos do autor - escritos políticos e autobiográficos,crônicas,crítica literária,peças teatrais,correspondência – e é prefaciada por Heiner Hesse, filho do romancista alemão. A obra completa de Hesse veio em ótima hora e sua composição atende a estudiosos e admiradores. Danke,Suhrkamp!

                                                          


Biografia II


   Agora que a Companhia das Letras coroou sua coleção das obras de Nietzsche com a publicação do Assim Falou Zaratustra, o interesse pela vida do pensador alemão aumentou sobremaneira. O filósofo que certa vez disse ser pura dinamite é muito lido e pesquisado no meio acadêmico brasileiro. Tamanha influência chega a surpreender até mesmo os alemães de hoje, que ficam admirados da força que ainda tem, fora das paragens alemãs, o pensamento daquele que apresentou o Übermensch ao mundo.
   O livro Nietzsche – Biografia de Uma Tragédia, do alemão Rüdiger Safranski, é, atualmente, a obra mais recomendável disponível em nosso idioma. Antes dela havia a biografia assinada por Daniel Halévy, publicada em 1909. Durante muitos anos foi a única referência biográfica de Nietzsche em português a que o leitor que não lia francês podia recorrer. Tinha o defeito de ter passado por poucas revisões e atualizações. O trabalho de Safranski superou o do biógrafo parisiense. Mas pode-se fazer mais. A biografia de Nietzsche em três volumes feita pelo suíço Curt Paul Janz é uma obra magna, citada inclusive por seu colega alemão. O doutor Curt Paul Janz faleceu em 2011 aos noventa e nove anos de idade, uma vida inteira dedicada à vida de outro. Ele estudou música e filosofia na Universidade de Basiléia e levou quinze anos para concluir a biografia de Nietzsche, o pensador que mais o influenciou em sua longa existência. Reconheço que a tradução da obra de Janz é um empreendimento difícil: são três volumes que totalizam mais de 1.900 páginas! Mas é necessário que a tenhamos em português, para o progresso das próprias universidades brasileiras. A professora Scarlett Marton, especialista em Nietzsche e criadora do GEN – Grupo de Estudos Nietzsche – cita o trabalho de Janz em quase todos os seus artigos, ressaltando a importância do mesmo. Editoras, pensem sobre a possibilidade de publicá-lo aqui. Estou convicto de que temos profissionais qualificados e capazes para essa empreitada colossal.  




Biografia I


   

A curiosidade humana não resiste a uma boa biografia. Existem leitores particularmente ávidos por biografias, que costumam ser bastante visadas no mercado editorial. São várias as motivações para publicá-las. O lucro costuma ser a mais imperiosa. Só que às vezes acontece de o fascínio puro e simples ser suficiente para que alguém se decida a escrever sobre a vida de uma pessoa.
   Não temos ainda, no mercado editorial brasileiro, uma biografia de Hermann Hesse. A mais recomendada por especialistas é a obra Hermann Hesse: Pilgrim of Crisis: A Biography, do germanista Ralph Freedman. Esse biógrafo foi premiado em virtude de seu trabalho monumental, um livro com mais de 400 páginas cheias de detalhes elucidativos da vida de Hesse. Algumas características dos escritos do romancista alemão são melhor compreendidas após a leitura da biografia assinada por Freedman. Trata-se, de fato, de uma obra indispensável para estudiosos e admiradores. Às editoras, fica a sugestão: traduzam o livro de Ralph Freedman! É de fácil tradução e o ano da Alemanha no Brasil está chegando. O retorno financeiro é garantido. Não percam essa excelente oportunidade de obter lucro e de agradar a uma parcela considerável de brasileiros que amam o legado de Hermann Hesse.