domingo, 24 de junho de 2012

Ainda não!

                                                                   Ainda não!



  O diálogo entre cinema e literatura é antigo. Surgiu em Paris imediatamente após dois irmãos franceses deslumbrarem o mundo inteiro com uma invenção de nome singular: cinematógrafo. Intelectuais, literatos e teatrólogos ficaram, a princípio, inquietos. Aquela novidade podia produzir arte? Era ela própria uma forma de arte? Essas indagações, porém, não impediram que obras literárias fossem transmutadas em filmes. O resultado dessas empreitadas era sempre questionável, mas a tentativa já era um bom sinal: imagem e palavra podiam trocar idéias e experiências.
   Akira Kurosawa (1910-1998), um grande admirador da literatura russa, dirigiu um belo filme sobre a vida de um homem que amava as letras germânicas. Madadayo (1993) conta a história do professor Hyakken Uchida (1889-1971), docente de língua alemã na Academia Imperial do Exército Japonês. É um senhor erudito e sensível, muito querido por seus alunos, que vê com pesar a desgraça que tomou conta de sua terra natal: é o período posterior à Segunda Guerra Mundial,o Japão está arrasado. O que o mantém vivo é o amor de sua esposa e o apego que tem pela cultura à qual ele se dedicou durante anos. Sua cidade está destruída pelas bombas; contudo, inexplicavelmente, sua biblioteca permanece intacta. Ele padece da mania dos livros, aquela descrita por Brás Cubas. Os exemplares nas estantes são uma extensão dele mesmo, que se recusa sucumbir à destruição. Enquanto reconstrói a própria vida o professor é ajudado por seus ex-alunos, que o homenageiam em suas festas de aniversário. Perguntam-lhe “Mada kai?” (Está preparado?). E ele, com um imenso copo de cerveja nas mãos, responde sorridente “Mada dayo” (Ainda não). Não, ele ainda não está preparado para morrer. Quer se ater à vida, à esposa, ao país. Quer se ater aos que vêem nele uma figura paterna. Quer se ater às culturas que ele ama – japonesa e alemã – que as bombas não lograram destruir. É um filme que merece ser apreciado. 



   Michio Takeyama (1903-1984) foi outro professor japonês que amou a literatura alemã durante toda a sua vida. Autor do romance A Harpa da Birmânia, que se tornaria filme em 1956 pelas mãos de Kon Ichikawa, Takeyama estudou literatura alemã na Universidade Imperial de Tóquio, de onde partiu para se aperfeiçoar em Berlim. Em seu próprio país ele também foi crítico literário e tradutor. Verteu para o japonês as obras de nomes consagrados das letras alemãs, sobretudo as de um médico e teólogo que ele muito admirava: Albert Schweitzer. Takeyama foi corajoso ao criticar o totalitarismo que ia se apossando da Alemanha, então já aliada do Japão. Por muito menos que isso, pessoas eram presas e assassinadas pela irmã gêmea da Gestapo, a temida Kempeitai (polícia secreta do exército japonês). Em toda a produção escrita de Takeyama vêem-se influências de autores de língua alemã, em maior ou em menor grau. E o cinema tratou de auxiliá-lo na divulgação de seu trabalho. O invento dos irmãos Lumière é, de fato, um ótimo marido para a literatura. Esse casal um dia deixará de manter um diálogo? Talvez. Mas, por enquanto, a resposta é: ainda não!

sábado, 2 de junho de 2012

Obra Completa de Hermann Hesse

A publicação da Obra Completa ( Sämtliche Werke) de Hermann Hesse pela Suhrkamp Verlag é um fato notável.Quase uma enciclopédia,a coleção traz uma série de textos inéditos do autor - escritos políticos e autobiográficos,crônicas,crítica literária,peças teatrais,correspondência – e é prefaciada por Heiner Hesse, filho do romancista alemão. A obra completa de Hesse veio em ótima hora e sua composição atende a estudiosos e admiradores. Danke,Suhrkamp!

                                                          


Biografia II


   Agora que a Companhia das Letras coroou sua coleção das obras de Nietzsche com a publicação do Assim Falou Zaratustra, o interesse pela vida do pensador alemão aumentou sobremaneira. O filósofo que certa vez disse ser pura dinamite é muito lido e pesquisado no meio acadêmico brasileiro. Tamanha influência chega a surpreender até mesmo os alemães de hoje, que ficam admirados da força que ainda tem, fora das paragens alemãs, o pensamento daquele que apresentou o Übermensch ao mundo.
   O livro Nietzsche – Biografia de Uma Tragédia, do alemão Rüdiger Safranski, é, atualmente, a obra mais recomendável disponível em nosso idioma. Antes dela havia a biografia assinada por Daniel Halévy, publicada em 1909. Durante muitos anos foi a única referência biográfica de Nietzsche em português a que o leitor que não lia francês podia recorrer. Tinha o defeito de ter passado por poucas revisões e atualizações. O trabalho de Safranski superou o do biógrafo parisiense. Mas pode-se fazer mais. A biografia de Nietzsche em três volumes feita pelo suíço Curt Paul Janz é uma obra magna, citada inclusive por seu colega alemão. O doutor Curt Paul Janz faleceu em 2011 aos noventa e nove anos de idade, uma vida inteira dedicada à vida de outro. Ele estudou música e filosofia na Universidade de Basiléia e levou quinze anos para concluir a biografia de Nietzsche, o pensador que mais o influenciou em sua longa existência. Reconheço que a tradução da obra de Janz é um empreendimento difícil: são três volumes que totalizam mais de 1.900 páginas! Mas é necessário que a tenhamos em português, para o progresso das próprias universidades brasileiras. A professora Scarlett Marton, especialista em Nietzsche e criadora do GEN – Grupo de Estudos Nietzsche – cita o trabalho de Janz em quase todos os seus artigos, ressaltando a importância do mesmo. Editoras, pensem sobre a possibilidade de publicá-lo aqui. Estou convicto de que temos profissionais qualificados e capazes para essa empreitada colossal.  




Biografia I


   

A curiosidade humana não resiste a uma boa biografia. Existem leitores particularmente ávidos por biografias, que costumam ser bastante visadas no mercado editorial. São várias as motivações para publicá-las. O lucro costuma ser a mais imperiosa. Só que às vezes acontece de o fascínio puro e simples ser suficiente para que alguém se decida a escrever sobre a vida de uma pessoa.
   Não temos ainda, no mercado editorial brasileiro, uma biografia de Hermann Hesse. A mais recomendada por especialistas é a obra Hermann Hesse: Pilgrim of Crisis: A Biography, do germanista Ralph Freedman. Esse biógrafo foi premiado em virtude de seu trabalho monumental, um livro com mais de 400 páginas cheias de detalhes elucidativos da vida de Hesse. Algumas características dos escritos do romancista alemão são melhor compreendidas após a leitura da biografia assinada por Freedman. Trata-se, de fato, de uma obra indispensável para estudiosos e admiradores. Às editoras, fica a sugestão: traduzam o livro de Ralph Freedman! É de fácil tradução e o ano da Alemanha no Brasil está chegando. O retorno financeiro é garantido. Não percam essa excelente oportunidade de obter lucro e de agradar a uma parcela considerável de brasileiros que amam o legado de Hermann Hesse.

E por falar em Hesse...


    Hermann Hesse é um dos escritores alemães mais queridos no Brasil. Há algumas teorias a respeito da popularidade do alemão de olhos tranqüilos no país que abrigou muitos de seus compatriotas. Eu me perderia se começasse a falar sobre cada uma delas. É comum que o primeiro contato com Hesse aconteça quando se lê sua obra mais conhecida, O Lobo da Estepe. Esse título é um daqueles que se atrelam ao vocabulário. Já virou nome de banda de rock e de peças teatrais. O autor de Sidarta, contudo, foi muito mais do que criador de títulos inesquecíveis.
   Não é tarefa fácil falar acerca da personalidade do “último dos românticos”. Eu o mentalizo na bela livraria onde iniciou uma comunhão mais íntima com os livros. O jovem encarregado da organização do acervo da loja imerso naquele mar de leituras, dividindo-se entre as obrigações do serviço e um mundo que era só dele. Surgem os primeiros escritos, tão jovens quanto ele. Quando aparece a oportunidade de viajar, ele parte. Visita o Oriente e já não é mais o mesmo. A grande catástrofe de 1914 não o deixa indiferente. Ele se dispõe a lutar, mas vai sem o ânimo suicida de tantos soldados que vivenciaram aquele triste acontecimento. Nos campos de batalha, sua compleição física frágil não é condizente com o fragor dos combates e ele serve à sua pátria cuidando de seus irmãos de armas feridos. A batalha mais sangrenta, porém, é a que atormenta a própria existência de Hesse: problemas familiares, perseguição política, acusação de traição... Ele desaba ante a tantos inimigos e vai se tratar. Busca refúgio na montanhosa Suíça, de onde nunca mais sairá. Nada mais o detém na Alemanha. A ascensão do Nazismo apenas reforça seu desejo de se manter afastado de seu lar espiritual.
   Observemos Hesse.






Nas fotos em que aparece escrevendo,pintando,desenhando, caminhando ou em família está bem evidente a introspecção de um homem que soube interpretar suas angústias e dar-lhes feições mais amenas. Ele via coisas que somente ele podia ver. Parecia estar mais atento ao que se passava em si mesmo do que ao seu redor. É só uma impressão: ele jamais ignorou os acontecimentos externos, e seus escritos provam isso. A grandiosidade de seu intelecto e a sensibilidade de sua alma é que exigiam dele uma atenção maior aos seus pensamentos, às releituras da realidade que ele fazia. Era-lhe impossível disfarçar sua natureza mística e hermética. Sempre enigmático, nascido numa cidadezinha em meio à floresta mais misteriosa da Europa e montanhês por opção, Hesse preferia lugares que o distanciavam das turbulências mundanas e o punham mais perto de si mesmo. O que quer que ele fizesse, estava constantemente em viagem( Fahrt).Uma viagem que talvez não tenha ainda terminado.