domingo, 19 de agosto de 2012

Nem só de Grimm vive a Alemanha







   Em vinte de dezembro deste ano o mundo literário irá comemorar a permanência de uma coletânea de duzentos contos sobre os quais crianças e estudiosos de muitas nacionalidades já se debruçaram. Nessa data, os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm publicaram o primeiro volume de Kinder- und Hausmärchen. Os volumes dois e três vieram nos anos seguintes - e nunca mais a literatura foi a mesma! A influência dos jovens juristas e bibliotecários que, como diria Machado de Assis, padeciam de achaques literários, fez-se e ainda se faz visível em todo o universo artístico, transpondo barreiras culturais e idiomáticas sem dificuldades. O lugar de honra dos referidos irmãos é mais do que merecido. Só que a fama de uns obscurece o talento de outros. Na literatura não é diferente. Façamos justiça a um outro alemão que também se encantou por lendas e contos de fadas a ponto de registrá-los para a posteridade.
   O alemão em questão chamava-se Ludwig Bechstein (1801-1860). Natural de Weimar, Bechstein sofreu muito cedo o infortúnio de ser o resultado de uma relação ilícita para os padrões da época. O francês Louis Dupontreau abandonou a pobre Johanna Carolina Dorothea Bechstein ainda grávida do futuro escritor, expondo-a a humilhação pública. O naturalista Johann Matthäus Bechstein, parente da moça, livrou mãe e filho do opróbrio adotando o menino quando este tinha nove anos. Graças à boa condição financeira do tio, Ludwig Bechstein pôde estudar e escolheu a profissão de farmacêutico (ah,os mistérios alquímicos! Sempre fascinando escritores e sonhadores!). Dos vinte e oito anos de idade até os trinta, Bechstein estudou História, Literatura e Filosofia, primeiro em Leipzig, depois em Munique, dessa vez beneficiado por uma bolsa de estudos concedida por Bernhard II, Duque de Saxe-Meiningen. A partir daí começa a semelhança com os irmãos Grimm: em 1831, Bechstein foi nomeado bibliotecário em Meiningen. Logo ganhou confiança do nobre que o ajudou, e em 1840 foi nomeado Conselheiro. A estabilidade financeira permitiu-lhe um convívio íntimo e tranqüilo com os inúmeros livros da biblioteca ducal. A bela paisagem de Meiningen também contribuiu para que Bechstein deixasse à vontade sua fértil imaginação. Embora já houvesse publicado contos e poemas enquanto atuou como farmacêutico, e mais tarde na universidade, foi só no ano de 1845 que ele trouxe ao público sua produção até hoje mais conhecida: Deutsches Märchenbuch. Esse livro traz contos tão belos, profundos e eruditos quanto as narrativas coletadas por Jacob e Wilhelm Grimm. A fonte é a mesma: o Märchen genuíno, aquele que não se preocupa com “finais felizes”; antes, seu foco está em verdades mais complexas nem sempre visíveis à primeira leitura. Como não podia deixar de ser, sendo autêntico filho do Romantismo, a religião igualmente influenciou o trabalho de Bechstein. Em 1834 ele publicou Luther, uma breve biografia literária do reformador protestante; e em 1853 veio o Deutsches Sagenbuch, coletânea de lendas alemãs. A mitologia não poderia jamais ficar fora de uma produção literária romântica.

   Até hoje Ludwig Bechstein é muito querido por seus conterrâneos da Turíngia. Pouco conhecido e estudado no Brasil, esse autor tem muito a nos oferecer. Todo um tesouro de uma Alemanha idealizada pelos devaneios de um escritor sensível e talentoso está aí para ser descoberto por nós. Que neste ano de comemorações pela obra dos irmãos Grimm seja também possível não nos esquecermos dos demais alemães geniais e produtivos que trouxeram para este mundo as realidades de um sonho.  

domingo, 8 de julho de 2012


                                     Era uma vez...Grimm!


                                                     


   Na sexta-feira passada, dia 6 de julho, fui ao SESC Ginástico a fim de assistir à peça “Era uma vez...Grimm” por recomendação de um amigo. Confesso que minha maior motivação foi o fato de o foco de meus estudos em literatura alemã serem os contos de fadas, ou Märchen. No mais, minhas expectativas eram até modestas. Contudo, as atuações de Wladimir Pinheiro e José Mauro Brant, que interpretam os irmãos Grimm, e as de Ester Elias e Janaina Azevedo, que dão vida às madrastas e princesas, deixaram-me extremamente fascinado. Um musical enriquecido com efeitos especiais belíssimos, a peça faz uma justa homenagem aos irmãos que deixaram para o mundo o legado das tradições orais alemãs. A semelhança dos atores com Jacob e Wilhelm Grimm é inacreditavelmente impressionante. Conseguiram mesclar, a um só tempo, a imagem do típico romântico do século XIX com alguns retoques do expressionismo alemão da década de 1920. Antes ou depois da apresentação o espectador pode adquirir um portfólio no qual há lindas ilustrações e ótimos artigos, em especial da doutora Karin Volobuef, professora na UNESP. O espetáculo é apresentado nas versões adulta e infantil e vai até o dia 29 de julho. Recomendo-o a todos.

Idioma e fascínio


                                                     Idioma e fascínio


                                       


   É bem possível que Elias Canetti (1905-1994) não tenha sido o primeiro a usar a expressão die Zaubersprache (a língua mágica) para referir-se ao idioma alemão. Mas é inegável que o trabalho desse romancista tornou-a mais famosa. O mundo atual vive sob a égide do inglês, ferramenta mais do que útil para os muitos contextos de hoje. Entretanto, a língua alemã tem algo em si que encanta, fascina, enleva, uma beleza idiomática capaz de atingir até os que a desconhecem. Seja na forma de poema, romance, música ou simples diálogo, o alemão fascina. Há quem se expresse por meio dele porque escolheu fazê-lo. Alguns autores geniais que escreveram em alemão não eram alemães; porém, adotaram o áspero e belo idioma germânico como sua pátria espiritual.
   Comecemos por Elias Canetti. O autor de Auto de Fé (Die Blendung) era búlgaro e judeu de origem sefardita. Cresceu num ambiente onde se falavam várias línguas, dentre elas o ladino, idioma judeu-espanhol herança de seus ancestrais. Aos oito anos de idade ele presenciou seus pais conversarem numa língua que lhe era incompreensível, mas encantadora. Sim, era alemão, mais especificamente o alemão vienense, uma vez que o casal havia estudado na Áustria. Canetti logo se mudaria com a família para a Inglaterra, mas ficaria pouco tempo lá. Após o falecimento de seu pai ele vai para Viena, onde fica até a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Muda-se, então, para a Suíça, de onde parte para estudar Química em Frankfurt, Alemanha. Em 1938 acontece o infeliz Anschluss, que obriga Canetti a ir para Londres, cidade na qual viverá até a década de 1970. Fluente em muitas línguas, Canetti escolheu o alemão para tornar memoráveis suas obras. Em tempo: a frase die Zaubersprache está na autobiografia A Língua Absolvida (Die Gerettete Zunge).
   O franzino Franz Kafka (1883-1924), que dispensa maiores apresentações, era natural de Praga quando essa magnífica cidade fazia parte do então poderoso império Austro-Húngaro. A germanofilia era forte no meio intelectual e social freqüentado pelos familiares e amigos do jovem Kafka, que já falava alemão desde a infância. Na universidade, onde se formou em Direito, as aulas eram também ministradas nesse idioma. Não havia fuga possível. Todo o mundo grotesco e distorcido de Kafka foi transposto para o papel em língua alemã.
   Outro súdito do extinto império Austro-Húngaro, Sigmund Freud (1856-1939) amou sobremaneira o idioma alemão e fez dele mais do que um veículo para disseminar suas idéias. Seu amigo,e depois inimigo,Carl Gustav Jung era oriundo de Zurique, na Suíça, e suas obras foram igualmente escritas em alemão com um toque especial: as singularidades da variante desse idioma falado em terras suíças.
   Se listasse aqui os numerosos não-alemães, incluindo brasileiros, que se utilizaram da língua alemã para evolução do conhecimento, o artigo se tornaria longo e enfadonho. A guisa de conclusão cito apenas a austríaca Elfriede Jelinek, laureada com o Nobel de Literatura em 2004, e a romena Herta Müller, ganhadora do mesmo prêmio em 2009. Como estudante de Letras-Alemão, tenho muitos motivos para crer que a língua alemã seguirá conquistando adeptos e fascinando leitores e escritores de todo o mundo.

domingo, 24 de junho de 2012

Ainda não!

                                                                   Ainda não!



  O diálogo entre cinema e literatura é antigo. Surgiu em Paris imediatamente após dois irmãos franceses deslumbrarem o mundo inteiro com uma invenção de nome singular: cinematógrafo. Intelectuais, literatos e teatrólogos ficaram, a princípio, inquietos. Aquela novidade podia produzir arte? Era ela própria uma forma de arte? Essas indagações, porém, não impediram que obras literárias fossem transmutadas em filmes. O resultado dessas empreitadas era sempre questionável, mas a tentativa já era um bom sinal: imagem e palavra podiam trocar idéias e experiências.
   Akira Kurosawa (1910-1998), um grande admirador da literatura russa, dirigiu um belo filme sobre a vida de um homem que amava as letras germânicas. Madadayo (1993) conta a história do professor Hyakken Uchida (1889-1971), docente de língua alemã na Academia Imperial do Exército Japonês. É um senhor erudito e sensível, muito querido por seus alunos, que vê com pesar a desgraça que tomou conta de sua terra natal: é o período posterior à Segunda Guerra Mundial,o Japão está arrasado. O que o mantém vivo é o amor de sua esposa e o apego que tem pela cultura à qual ele se dedicou durante anos. Sua cidade está destruída pelas bombas; contudo, inexplicavelmente, sua biblioteca permanece intacta. Ele padece da mania dos livros, aquela descrita por Brás Cubas. Os exemplares nas estantes são uma extensão dele mesmo, que se recusa sucumbir à destruição. Enquanto reconstrói a própria vida o professor é ajudado por seus ex-alunos, que o homenageiam em suas festas de aniversário. Perguntam-lhe “Mada kai?” (Está preparado?). E ele, com um imenso copo de cerveja nas mãos, responde sorridente “Mada dayo” (Ainda não). Não, ele ainda não está preparado para morrer. Quer se ater à vida, à esposa, ao país. Quer se ater aos que vêem nele uma figura paterna. Quer se ater às culturas que ele ama – japonesa e alemã – que as bombas não lograram destruir. É um filme que merece ser apreciado. 



   Michio Takeyama (1903-1984) foi outro professor japonês que amou a literatura alemã durante toda a sua vida. Autor do romance A Harpa da Birmânia, que se tornaria filme em 1956 pelas mãos de Kon Ichikawa, Takeyama estudou literatura alemã na Universidade Imperial de Tóquio, de onde partiu para se aperfeiçoar em Berlim. Em seu próprio país ele também foi crítico literário e tradutor. Verteu para o japonês as obras de nomes consagrados das letras alemãs, sobretudo as de um médico e teólogo que ele muito admirava: Albert Schweitzer. Takeyama foi corajoso ao criticar o totalitarismo que ia se apossando da Alemanha, então já aliada do Japão. Por muito menos que isso, pessoas eram presas e assassinadas pela irmã gêmea da Gestapo, a temida Kempeitai (polícia secreta do exército japonês). Em toda a produção escrita de Takeyama vêem-se influências de autores de língua alemã, em maior ou em menor grau. E o cinema tratou de auxiliá-lo na divulgação de seu trabalho. O invento dos irmãos Lumière é, de fato, um ótimo marido para a literatura. Esse casal um dia deixará de manter um diálogo? Talvez. Mas, por enquanto, a resposta é: ainda não!

sábado, 2 de junho de 2012

Obra Completa de Hermann Hesse

A publicação da Obra Completa ( Sämtliche Werke) de Hermann Hesse pela Suhrkamp Verlag é um fato notável.Quase uma enciclopédia,a coleção traz uma série de textos inéditos do autor - escritos políticos e autobiográficos,crônicas,crítica literária,peças teatrais,correspondência – e é prefaciada por Heiner Hesse, filho do romancista alemão. A obra completa de Hesse veio em ótima hora e sua composição atende a estudiosos e admiradores. Danke,Suhrkamp!

                                                          


Biografia II


   Agora que a Companhia das Letras coroou sua coleção das obras de Nietzsche com a publicação do Assim Falou Zaratustra, o interesse pela vida do pensador alemão aumentou sobremaneira. O filósofo que certa vez disse ser pura dinamite é muito lido e pesquisado no meio acadêmico brasileiro. Tamanha influência chega a surpreender até mesmo os alemães de hoje, que ficam admirados da força que ainda tem, fora das paragens alemãs, o pensamento daquele que apresentou o Übermensch ao mundo.
   O livro Nietzsche – Biografia de Uma Tragédia, do alemão Rüdiger Safranski, é, atualmente, a obra mais recomendável disponível em nosso idioma. Antes dela havia a biografia assinada por Daniel Halévy, publicada em 1909. Durante muitos anos foi a única referência biográfica de Nietzsche em português a que o leitor que não lia francês podia recorrer. Tinha o defeito de ter passado por poucas revisões e atualizações. O trabalho de Safranski superou o do biógrafo parisiense. Mas pode-se fazer mais. A biografia de Nietzsche em três volumes feita pelo suíço Curt Paul Janz é uma obra magna, citada inclusive por seu colega alemão. O doutor Curt Paul Janz faleceu em 2011 aos noventa e nove anos de idade, uma vida inteira dedicada à vida de outro. Ele estudou música e filosofia na Universidade de Basiléia e levou quinze anos para concluir a biografia de Nietzsche, o pensador que mais o influenciou em sua longa existência. Reconheço que a tradução da obra de Janz é um empreendimento difícil: são três volumes que totalizam mais de 1.900 páginas! Mas é necessário que a tenhamos em português, para o progresso das próprias universidades brasileiras. A professora Scarlett Marton, especialista em Nietzsche e criadora do GEN – Grupo de Estudos Nietzsche – cita o trabalho de Janz em quase todos os seus artigos, ressaltando a importância do mesmo. Editoras, pensem sobre a possibilidade de publicá-lo aqui. Estou convicto de que temos profissionais qualificados e capazes para essa empreitada colossal.  




Biografia I


   

A curiosidade humana não resiste a uma boa biografia. Existem leitores particularmente ávidos por biografias, que costumam ser bastante visadas no mercado editorial. São várias as motivações para publicá-las. O lucro costuma ser a mais imperiosa. Só que às vezes acontece de o fascínio puro e simples ser suficiente para que alguém se decida a escrever sobre a vida de uma pessoa.
   Não temos ainda, no mercado editorial brasileiro, uma biografia de Hermann Hesse. A mais recomendada por especialistas é a obra Hermann Hesse: Pilgrim of Crisis: A Biography, do germanista Ralph Freedman. Esse biógrafo foi premiado em virtude de seu trabalho monumental, um livro com mais de 400 páginas cheias de detalhes elucidativos da vida de Hesse. Algumas características dos escritos do romancista alemão são melhor compreendidas após a leitura da biografia assinada por Freedman. Trata-se, de fato, de uma obra indispensável para estudiosos e admiradores. Às editoras, fica a sugestão: traduzam o livro de Ralph Freedman! É de fácil tradução e o ano da Alemanha no Brasil está chegando. O retorno financeiro é garantido. Não percam essa excelente oportunidade de obter lucro e de agradar a uma parcela considerável de brasileiros que amam o legado de Hermann Hesse.

E por falar em Hesse...


    Hermann Hesse é um dos escritores alemães mais queridos no Brasil. Há algumas teorias a respeito da popularidade do alemão de olhos tranqüilos no país que abrigou muitos de seus compatriotas. Eu me perderia se começasse a falar sobre cada uma delas. É comum que o primeiro contato com Hesse aconteça quando se lê sua obra mais conhecida, O Lobo da Estepe. Esse título é um daqueles que se atrelam ao vocabulário. Já virou nome de banda de rock e de peças teatrais. O autor de Sidarta, contudo, foi muito mais do que criador de títulos inesquecíveis.
   Não é tarefa fácil falar acerca da personalidade do “último dos românticos”. Eu o mentalizo na bela livraria onde iniciou uma comunhão mais íntima com os livros. O jovem encarregado da organização do acervo da loja imerso naquele mar de leituras, dividindo-se entre as obrigações do serviço e um mundo que era só dele. Surgem os primeiros escritos, tão jovens quanto ele. Quando aparece a oportunidade de viajar, ele parte. Visita o Oriente e já não é mais o mesmo. A grande catástrofe de 1914 não o deixa indiferente. Ele se dispõe a lutar, mas vai sem o ânimo suicida de tantos soldados que vivenciaram aquele triste acontecimento. Nos campos de batalha, sua compleição física frágil não é condizente com o fragor dos combates e ele serve à sua pátria cuidando de seus irmãos de armas feridos. A batalha mais sangrenta, porém, é a que atormenta a própria existência de Hesse: problemas familiares, perseguição política, acusação de traição... Ele desaba ante a tantos inimigos e vai se tratar. Busca refúgio na montanhosa Suíça, de onde nunca mais sairá. Nada mais o detém na Alemanha. A ascensão do Nazismo apenas reforça seu desejo de se manter afastado de seu lar espiritual.
   Observemos Hesse.






Nas fotos em que aparece escrevendo,pintando,desenhando, caminhando ou em família está bem evidente a introspecção de um homem que soube interpretar suas angústias e dar-lhes feições mais amenas. Ele via coisas que somente ele podia ver. Parecia estar mais atento ao que se passava em si mesmo do que ao seu redor. É só uma impressão: ele jamais ignorou os acontecimentos externos, e seus escritos provam isso. A grandiosidade de seu intelecto e a sensibilidade de sua alma é que exigiam dele uma atenção maior aos seus pensamentos, às releituras da realidade que ele fazia. Era-lhe impossível disfarçar sua natureza mística e hermética. Sempre enigmático, nascido numa cidadezinha em meio à floresta mais misteriosa da Europa e montanhês por opção, Hesse preferia lugares que o distanciavam das turbulências mundanas e o punham mais perto de si mesmo. O que quer que ele fizesse, estava constantemente em viagem( Fahrt).Uma viagem que talvez não tenha ainda terminado.

sábado, 26 de maio de 2012

Heranças alemãs pouco lembradas


                                     (fonte: http://www.1000-maerchen.de)


       Talvez o leitor não conheça ou não se lembre do cidadão da imagem acima. É lamentável que um escritor talentoso como ele não seja tão lembrado quanto seus compatriotas alemães.Sim,ele era alemão e se chamava Wilhelm Hauff e,à semelhança dos irmãos Grimm,também se dedicou a coletar e criar alguns dos mais apreciados Märchen. Essa designação é menos popular que fairy tales ou contos de fada, porém diz muito mais do que estas duas. Como bem explicou Max Lüthi, "As palavras alemãs <Märchen, Märlein> (do alemão medieval maerlîn) são formas diminutivas de <Mär> (do alemão medieval alto, mârî; do alemão medieval, maere, feminino e neutro, informação, notícia, narrativa, rumor); designavam, portanto, originalmente uma história curta. Como outros diminutivos, foram desde cedo submetidos a uma depreciação do sentido e empregados para histórias inventadas, não verdadeiras."Vejamos:inicialmente,uma história curta.O estudioso suíço supracitado,em suas obras sobre os Märchen,acrescenta outros fatores comumente ignorados – intencionalmente ou não - pelo cinema e por outros meios de comunicação:nem sempre as narrativas têm finais felizes,eram mais voltados para adultos do que para crianças,nem sempre seu objetivo é entreter,nem sempre a mulher simboliza a pureza absoluta e não é raro os "vilões" levarem a melhor.Tais verdades são mais do que suficientes para demolir as versões açucaradas dos contos de fada que vemos às centenas hoje em dia.Atualmente,mais do que na época de Charles Perrault,há quem acredite que as crianças(e eventualmente os adultos)devem ser poupados dos detalhes violentos,melancólicos e macabros dos contos de fada.Ainda assim,o próprio Perrault,um burguês que escrevia para a burguesia com toda a cautela para não perder os favores dessa classe e da nobreza,não omitiu pormenores horripilantes como canibalismo e assassinato.Pouco mais de oitenta anos após o falecimento do escritor francês,dois irmãos nasceriam e tornariam ainda mais populares,inclusive no meio acadêmico,os Märchen.Também burgueses que escreviam para um público cada vez mais exigente,Wilhelm e Jacob Grimm dedicaram suas vidas à coleta e à composição de contos de fada.Tiveram o cuidado de serem menos explícitos no que dizia respeito à crueldade da existência em suas narrativas,uma vez que precisavam de seus empregos e seus patrões eram imprevisíveis e não gostavam muito de serem questionados.Mas nelas estão camuflados,aqui e ali, em maior ou menor grau,todos os dilemas que o ato de viver traz ao ser humano.
       Hans Christian Andersen usou todo o seu talento e sensibilidade para compor seus contos de fada.O dinamarquês mais querido do mundo por crianças e adultos jamais fez questão de tirar o elemento melancólico de seus escritos.Ele chegou mais perto da essência dos Märchen que seus predecessores. Andersen,ele mesmo muito tímido e dado à introversão,teve crises de depressão e sofreu desilusões amorosas que o marcaram profundamente.É impossível negar a imensa tristeza presente nos contos "A Vendedora de Fósforos" e "O Soldadinho de Chumbo".Seus contos são numerosos,seria inviável discorrer sobre todos aqui.No geral,porém,têm finais tristes.E há quem diga que o próprio Andersen criou o patinho feio à sua imagem e semelhança. Coincidência? Talvez. O intercâmbio entre fantasia e realidade, porém, é mais freqüente do que se supõe, como bem observou Antonio Candido em A Literatura e a formação do homem: (...) a fantasia nunca é pura. Ela se refere constantemente a alguma realidade: fenômeno natural, paisagem, sentimento, fato, desejo de explicação, costumes, problemas humanos, etc. 


(fonte: http://www.old-picture.com)

Mais perto de nosso século está o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura,Hermann Hesse.Esse alemão da floresta negra é mais conhecido por seus romances Sidarta e O Lobo da Estepe,mas sua criatividade também se fez notar na produção de Märchen.Seus contos de fada não têm finais felizes de acordo com a expectativa de muitos- e nem por isso deixam de ser belíssimos.São enigmáticos,têm um toque de melancolia somada à reflexão,bem ao estilo do escritor oriundo da floresta mais lembrada quando se fala em contos de fada. O ambiente montanhoso e onírico, os lagos tranqüilos e límpidos, as viagens para o interior do si mesmo, a relação ora amena ora conflituosa entre homem e natureza, tudo isso e outros fatores compõem os Märchen de Hesse. Os contos Curiosa Narração sobre Uma Outra Estrela, Sequência de Um Sonho e Metamorfose, presentes na edição brasileira Sonho de uma Flauta e outros contos, são perfeitos para quem quiser conhecer o outro lado talentoso do criador de Demian.
      Os estudos de psicologia analítica de Carl Gustav Jung destacam a importância das religiões e das mitologias para a psique humana. Os Märchen ocupam lugar especial nos escritos do médico suíço e nos trabalhos de uma de suas colaboradoras mais brilhantes, Marie-Louise von Franz. Ela, mais do que ele, escreveu obras exclusivamente focadas na análise e na interpretação dos contos de fada. Seus livros transbordam erudição e sensibilidade sendo, à sua maneira, quase ‘’contos de fada científicos’’. Vale a pena conferir a produção da colega de Jung. Não é de hoje que contos de fada são utilizados como recurso terapêutico e algumas realidades, segundo Mircea Eliade, só podem ser compreendidas mediante a análise dos mitos, imagens e símbolos que integram a individualidade do ser humano. Bruno Bettelheim que o diga...
    Voltando às terras alemãs, uma ótima notícia para admiradores e estudiosos dos Märchen: em Regensburg foram encontrados quinhentos contos fada do historiador bávaro Franz Xaver Von Schönwerth. Formado em Direito, funcionário do governo e depois nobre, esse contemporâneo dos Grimm passou décadas coletando relatos orais, costumes e tradições populares da região do Alto Palatinado. A fama de Jacob e Wilhelm, contudo, obscureceu o trabalho de Von Schönwerth por mais de 150 anos. Sua produção ficou quase que totalmente conhecida apenas por especialistas, até que a pesquisadora Erika Eichenseer decidiu reparar essa injustiça. Com a ajuda de outros especialistas, ela fundou em 2008 o Franz Xaver von Schönwerth Society a fim de divulgar o trabalho desse autor e incentivar mais pesquisas sobre o mesmo. Já é possível encontrar bons estudos sobre Von Schönwerth, e quem lê alemão e quiser apreciar seus Märchen pode procurar o livro Aus der Oberpfalz – Sitten und Sagen.

      O Brasil também herdou o legado dos Märchen. A influência lusitana naturalmente trouxe para cá contos de fada e outras tradições populares portuguesas, mas alguns de nossos escritores foram completa e diretamente influenciados por alemães e franceses.Sem abrirem mão de sua criatividade, Guimarães Rosa, autor do belíssimo Fita Verde no Cabelo e Monteiro Lobato, artífice da amável Dona Benta, escreveram contos de fada que encantaram gerações. A ítalo-brasileira Marina Colasanti é um exemplo mais atual. Seus contos são profundos, cheios de misticismo e linguagem simbólica.Sua obra Uma Idéia Toda Azul, lançada em 1979, foi muito elogiada e premiada e segue sendo recomendada a crianças, jovens e adultos. O leitor muito ganha se também conferir os livros Doze reis e a moça no labirinto do vento e Longe Como o Meu Querer.
       O psicanalista, filósofo e teólogo Rubem Alves, mais conhecido por suas obras relacionadas à educação e ciência, é um excelente contador de histórias, algumas delas autênticos Märchen. Sejam criações próprias, sejam releituras feitas pelo mineiro de Boa Esperança, o fato é que seus contos de fada(não sei se ele concordaria com essa nomenclatura,mas...) chamam o leitor à reflexão e à auto análise sem caírem na bobagem do falso moralismo. Um pouco da boa e velha mineirice dos contadores de causos de antigamente está presente nos textos de Alves, deixando-os ainda mais aprazíveis. Que o leitor procure A Menina e O Pássaro Encantado, A Árvore e A Aranha e A Planície e o Abismo. É uma pena que esse brilhante escritor tenha encerrado suas atividades como cronista da Folha de São Paulo.
        Tanto se falou aqui sobre Märchen e, no entanto, pouco se disse sobre o rapaz da ilustração já mencionada. Apenas o nome e a nacionalidade. Pois bem: Wilhelm Hauff nasceu em Stuttgart e, assim como Álvares de Azevedo, morreu muito jovem aos 25 anos em 1827. Estudou na Universidade de Tübingen e trabalhou como tutor e jornalista. Escreveu alguns poemas e um romance histórico, Lichtenstein, em virtude da influência romântica de Walter Scott. Mas foram os Märchen de Hauff que o fizeram mais conhecido e lembrado .O Califa Cegonha(Kalif Stork) e O Conto do Navio Fantasma (Die Geschichte von dem Gespensterschiff) são um bom começo para quem se dispuser a lê-lo. Não há muito de sua obra disponível em português. Para quem lê alemão, várias editoras alemãs publicam os Sämtliche Märchen de Wilhelm Hauff. O leitor pode ficar à vontade para escolher edições comentadas, ilustradas ou as mais simples. O importante é deixar-se embevecer pela atmosfera mística e mítica do gênero fantástico.